NÃO JULGAR
“Não julgueis, a fim de não serdes julgados; porquanto sereis julgados conforme houverdes julgado os outros; com a medida com que medirdes sereis medido. “ Jesus. (MATEUS, 7:1-2.)
Julgarmo-nos uns aos outros tem-se constituído um forte hábito através dos tempos. Tal hábito encontra-se registrado na história da Humanidade, no seio de todos os povos e na utilização de todos os idiomas. Ressalta-se, ainda, na obra de todos os poetas antigos e modernos, desde Homero a Shakespeare, e sobreleva-se nos autores contemporâneos.
A ação de julgar é conseqüência natural da ação de raciocinar. E decorre de dois fatores: discordar e refletir. Por isso que os seres irracionais não julgam, pois lhes falta a razão: desenvolvem apenas o instinto, que não lhes permite pensar.
É verdade que o instinto, por evolução, se transformará futuramente em inteligência, pois constitui a base ou fundamento dela, depois da grande e sublime metamorfose ou nascimento espiritual.
Antes desse nascimento, deverá o ser passar por estado de depuração, em que precisará perder a “lembrança” instintiva de suas relações com a matéria, em que o irracional aprendia a distinguir determinadas coisas, como o melhor meio para a sua sobrevivência, a melhor água para beber, o alimento que melhor lhe conviesse, etc. E isso já se nos afigura uma forma incipiente de juízo, em determinadas espécies animais.
A ação de julgar é, portanto, inerente ao ser já a partir do instante em que se fez Espírito dotado da razão e com a faculdade de conhecer e de compreender o meio que o cerca, o que o torna inteligente e capaz de pensar.
Julgar é, pois, uma ação natural, normal e imprescindível no Espírito, encarnado ou desencarnado, do que podemos concluir que o Cristo não nos nega o direito de julgar e sim nos adverte contra o julgamento impróprio ou irresponsável, a censura injusta ou leviana a respeito dos outros.
O Espírito é dotado de cinco faculdades essenciais e fundamentais à sua condição de ser ou ente criado à imagem e semelhança de Deus. São elas:
1. Inteligência - condição de entender, conhecer e compreender o ambiente que o cerca ou meio em que vive e onde precisa desenvolver-se; tal faculdade lhe oferece ainda a percepção relativamente fácil das coisas.
2. Razão - condição que lhe outorga o poder de aprofundar-se no conhecimento das coisas, compreender determinados fatos, discernir, perquirir e, com a utilização da inteligência, criar e inventar.
3. Juízo - faculdade intelectual de manter-se cuidadosamente dentro de determinados limites de sua própria capacidade de auto-avaliação ou critério a respeito do que lhe for dado examinar.
4. Livre-arbítrio - poder de se autodeterminar.
5. Consciência - sentimento do que se passa no indivíduo, em seu íntimo e em sua natureza; é testemunha e ao mesmo tempo juiz incorruptível e severíssimo da própria alma, que aprova as boas atitudes e rejeita as más.
Na ocasião em que Jesus se expressou sobre a ação de julgar, o homem israelita ignorava essas coisas do ponto de vista filosófico. Era dotado de todas essas faculdades mas as desconhecia como potências da alma que se interagiam na disciplinação do ser como criatura de Deus.
O homem hebreu era capaz de perceber o erro que outro praticasse, mas não conseguia dimensioná-lo em si mesmo. Daí a advertência do Mestre dos mestres: “Vês o argueiro no olho de teu irmão e não percebes a trave no teu olho!"
E era verdade. Vejamos o caso da mulher adúltera (João, 8:1-11). Ela não adulterou sozinha; nem mesmo se sabe se não foi induzida ao adultério com o propósito de conduzirem o Cristo a contradições e perda. Mas, o que nos impede supor que todos os perseguidores da infeliz mulher fossem também adúlteros e não sabiam, uns por hipocrisia, outros por ignorância mesmo?
Em nossos dias, porém, em sociedade, já a ninguém é dado o álibi da ignorância, tendo em vista o adultério haver tomado a característica simplória e cínica de moda, de luxo e fatuidade viciosa. Por outro lado, o desquite e o divórcio são, muitas vezes, pretextos para a troca de parceiros no processo conjugal, onde a prole é instruída a tudo aceitar como fato normal.
Será que não estamos exagerando ou julgando mal o nosso próximo e a sociedade? Não!
Pois que esses fatos estão documentados nas colunas sociais.
Na época do Cristo, entre os homens imperava a maledicência. Julgava-se até sob o testemunho de Deus: Disse Jesus, parabolicamente (Lucas, 18:9-14), que dois homens subiram ao templo para orar, um era fariseu, o outro, publicano. E o fariseu orava assim: “Ó meu Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem mesmo como esse publicano...” (que lhe estava ao lado). Nem Deus era poupado na hipocrisia dos homens, pois se um fariseu assim agia, imaginemos a totalidade!...
Deixemos o homem de ontem e voltemos as nossas atenções para o de nossos dias, em que a Humanidade parece agir como se de Deus houvesse esquecido inteiramente ou Ele houvesse deixado de existir.
Jura-se inocência, em nome de Deus, até nos tribunais, mesmo diante dos libelos acusatórios mais evidentes... Calunia-se o próprio Criador para justificar as mais torpes ações de corrupção...
Mata-se todos os dias... Finalmente, nenhum dos mandamentos da lei exarada no Sinai é cumprido.
E os chamados pecados de que a história das religiões trata quando fala de Sodoma e Gomorra são atos pueris, tolos, infantis diante do que hoje se pratica, abertamente, nos mais diversos recantos deste pobre planeta.
Repetimos: não é julgamento inserto na advertência do Mestre incomparável. São fatos que estão à vista nos jornais, nas capas das revistas, na televisão e no rádio. São atos de devassidão, de depravação, de hediondez, de ódios... E que, no entanto, a sociedade contemporânea pratica e aceita como normais, corretos e naturais.
No instante em que laboramos na composição deste trabalho, a esposa nos chama a atenção para notícia tristíssima de mais um crime que foge a tudo o que se possa colocar na condição de hediondez. Noticia a televisão que cinco jovens - um de 16, outro de 18 e três de 19 anos incendeiam um homem que, em Brasília, nossa Capital Federal, encontrava-se deitado num ponto de ônibus. Era um líder indígena que possivelmente se perdera de seus companheiros e, ali acossado pelo sono, buscara repouso. Mas, qual não foi nossa surpresa, quando, no dia seguinte, já presos, procuravam justificar-se que não sabiam que era um índio pataxó. Julgaram tratar-se de um mendigo!... Veja, leitor e irmão espírita, que não exageramos nos conceitos acima, pois, no caso em foco, não temos bandidos ou assassinos vulgares mas cinco jovens filhos das melhores famílias da sociedade brasiliense. Por quê? Que é que está faltando ao homem planetário?... Apenas uma coisa: espírito de religiosidade calcado na Luz do Evangelho do Cristo.
Não estamos querendo dizer com os nossos argumentos que a advertência do Cristo, quanto à ação de julgar, esteja superada. Muito ao contrário. Acresce, hoje, à responsabilidade do julgador o dever de discernir bastante, mormente no que tange à necessidade de considerar melhor o valor da família, quer como centro de formação moral, quer com célula-base da sociedade.
Vejamos como sobre a ação de julgar o Mestre se pronuncia: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça” (João, 7:24). E mais adiante, ainda no livro de João (12:47). “E se alguém ouvir as minhas palavras, e não crer, eu não o julgo; porque eu vim, não para julgar o mundo, mas para o salvar. “ Mais adiante, ele explica o porquê: quem rejeitar a sua palavra, já tem quem o julgue: sua própria consciência.
Ora, que somos nós? que são os Espíritos, que ajudam o mundo dos encarnados com as suas mensagens? Somos uns e outros porventura juízes? Que diz a Espiritualidade Superior a nosso respeito e do papel que nos cumpre desempenhar, desde que dele estejamos compenetrados?
Não somos juízes. Não nos compete lavrar sentenças contra quem quer que seja. Mas não estamos impedidos de ajuizar, tendo em vista a excelência de nosso papel, quer de arautos na pregação, quer de exemplificadores na conduta cristã. Nisto convém que sejamos discípulos autênticos do Senhor.
Em cada um de nós, nesta exercitação do Evangelho, deve haver uma profunda interação que compreenda razão, inteligência, juízo, consciência e livre-arbítrio, enquanto espiritistas. Temos o dever de tomar conhecimento das dores do mundo, mas atentos a uma postura de oração e fé, exemplificando fraternidade e disciplina, numa atitude indemovível de Amor.
Ao mesmo tempo, porém, que nos contristamos com todos os fatos desairosos vistos acima, fazemos uma certa empatia com aqueles que se candidataram e se candidatam, ainda, ao infortúnio espiritual e, quem sabe (?), ao expurgo deste planeta para mundos em condição evolutiva condizente com o empedernimento em que se encontram.
Não nos assiste, efetivamente, o direito de julgar quanto ao destino desses irmãos.
Percebemos a hediondez dos fatos, a iniqüidade dos atos, a impiedade dos sentimentos. Mas nada sabemos a respeito das razões íntimas que os impulsionaram a delinqüir e a se perderem nos desvãos das paixões e do erro. Somente Deus nos conhece, assim como conhece-se a si mesmo aquele que não se permitiu o entorpecimento da própria consciência...
A apatia para com os outros deve ser a conduta mental de um bom juiz e de todo aquele que se vê na contingência de assumir o compromisso de julgar. O Evangelho sugere perdão, complacência, misericórdia. Não obstante, perdão, complacência, misericórdia, enquanto atitudes, compreendem a existência de um erro ou falta já julgado, senão aceito como tal pela própria consciência do culpado.
O que ainda nos desafia o raciocínio é o entendimento, na ação de julgar, da advertência do Cristo: “Não julgueis.” Vejamos, então, o pensamento dos próprios Espíritos que se têm manifestado ao mundo na obra do Consolador.
Vejamos o raciocínio de Allan Kardec, no capítulo X, item 13 de “O Evangelho segundo o Espiritismo”:
“Não é possível que Jesus haja proibido se profligue o mal, uma vez que ele próprio nos deu o exemplo, tendo-o feito, até em termos enérgicos. O que quis significar é que a autoridade para censurar está na razão direta da autoridade moral daquele que censura. Tornar-se alguém culpado daquilo que condena noutrem é abdicar dessa autoridade, é privar-se do direito de repressão.”
(Grifamos.)
Um Espírito superior, no item 17 desse mesmo capítulo nos sugere:
(...) Não julgueis com severidade senão as vossas próprias ações (...)”.
E ensina-nos o Espírito São Luís a uma indagação do Codificador, no item 20, com bastante propriedade:
(...) A ninguém é defeso ver o mal, quando ele existe. (...) Aquele que note os defeitos do próximo o faça em seu proveito pessoal, isto é, para se exercitar em evitar o que reprova nos outros.”
Na obra “Os Quatro Evangelhos” (1º Tomo, 8ª edição FEB, pág. 472-473), o autor espiritual afirma que Jesus exortava seus discípulos a não julgarem levianamente e, mais adiante, ao explicar a questão da trave e do argueiro no olho, registra essas palavras a que igualmente destacamos, dada a sua importância:
“Depois então, quando fordes perfeitos, podereis censurar (julgar). Podereis, mas não o fareis, porque a perfeição das vossas almas vos terá aproximado daquele que, perfeição completa, disse: “Atire a primeira pedra o que dentre vós estiver sem pecado (...).”
A questão é mais séria do que a princípio se possa imaginar. Não é uma índole má que conduz as almas ao erro, ao crime, à iniqüidade, mas a imperfeição delas, a sua inferioridade moral.
No caso, por exemplo, do expurgo dos maus (obstinados) para mundos inferiores, o que ocorre não é uma condenação absoluta de Deus aos que não conseguiram aperfeiçoar-se e se mantêm enceguecidos na senda do mal, é uma questão de justiça. O Pai não considera justo que aqueles que atingiram um certo nível de perfeição fiquem sujeitos a uma espécie de estagnação planetária porque determinado contingente de Espíritos, por rebeldia, pouco caso fazem dos ensinos expressos na Lei e ratificados no Evangelho.
Sofrerão as conseqüências de sua obstinação. Quem os condena, Deus? Não! Para Deus não estão condenados mas reprovados. A consciência deles, sim, essa os condena. É sua função.
O mais severo dos tribunais!
Como interpretamos acima a consciência? Que a respeito dela dizem os filósofos e os pensadores? Repetem uns que é o juiz secreto da alma, que aprova as ações boas e rejeita as más; confirmam outros que é o juiz incorruptível e severíssimo do Espírito.
Retirar a trave do olho deve ser realmente “expurgar a alma de todos os vícios e tornar puro o coração.” Realizando este engenhoso salto da treva para a luz, apercebe-se o ser de que o erro, a maldade de seu irmão no trajeto evolucionista afigura-se-lhe simples argueiro no olho. E em tudo isso comprova-se a sabedoria do Mestre divino, ainda hoje incompreendido, e a grandeza do seu Evangelho, aguardando aplicação para que o reino de Deus se manifeste neste planeta.
Nosso planeta se aproxima do terceiro milênio da Era Cristã. Os que nele permanecerem serão comparados às virgens prudentes de que trata a parábola do Senhor no capítulo 25 do Evangelho segundo Mateus. E estarão em condição, finalmente, de compreender que Deus não pode contradizer-se ao mesmo tempo que nos ensina a perdoar, condenando irremissivelmente aqueles de seus filhos que, por imperfeição, se utilizam mal do livre-arbítrio. Serão expurgados da Terra, sim, já o dissemos, mas para, arrependidos, recuperarem-se e, purificados, prosseguirem no roteiro de sua evolução.
Inaldo Lacerda Lima