Importante estudar-se com mais profundidade o item exposto, para que alguns termos não nos levem a confusões ante a limpidez e racionalidade da Doutrina Espírita.
Ali, quando Kardec pergunta: "- Os Espíritos vêem a Deus?" , a resposta é: "- Só os Espíritos superiores o vêem e compreendem; os Espíritos inferiores o sentem e o advinham." Desdobrando a pergunta temos: "- Quando um Espírito inferior diz que Deus lhe proíbe ou lhe permite uma coisa, como sabe que a ordem vem de Deus?" Resposta: "- Ele não vê a Deus, mas sente sua sabedoria, e quando uma coisa não deve ser feita ou uma palavra não deve ser dita, ele pressente como por intuição uma advertência invisível que o proíbe de fazê-lo Vós mesmos não tendes pressentimentos, que são como uma advertência secreta, de fazer ou não fazer alguma coisa? Ocorre o mesmo para nós, só que num grau superior, porque como compreendes, sendo a essência dos Espíritos mais sutil que a tua, eles podem melhor receber as advertências divinas." E Kardec insiste (244-B): "- A ordem é transmitida diretamente por Deus ou por intermédio de outros Espíritos?" Ao que os Espíritos respondem: "- Ela não vem diretamente de Deus; para comunicar-se com Ele é preciso ser digno. Deus lhes transmite suas ordens para Espíritos mais elevados em perfeição e em instrução."
Do exposto, há diversas ilações a serem comentadas e interpretadas à luz dos ensinamentos do próprio Kardec. Assim, sempre tendo em vista os princípios doutrinários, não devemos jamais aceitar palavras passivamente, sem o crivo da razão, venham elas de onde vierem. Aceitar passivamente seria comodismo, negligência. "Não há fé inabalável senão aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade." Ou seja, se não questionarmos o que contraria nossa consciência, além de sermos hipócritas conosco mesmos, nos leva a não compreender; se não compreendemos não podemos confiar, ter fé. Portanto, interpretação, questionamento, debate, esclarecimento, são vitais na Doutrina Espírita. Levados por isto, e por nossa mania em não calarmos para não sermos coniventes, passamos a refletir sobre os seguintes tópicos:
1- O verbo ver, empregado na 1° pergunta, não deve ser analisado literalmente. A pretensão de ver a Deus seria antropomorfismo dos mais grotescos.
2- Os termos "Só os Espíritos superiores o vêem e compreendem" devem ser devidamente estudados. Ver, aqui, como no item anterior, traduz sentir, pressentir, e não ver, enxergar, com os olhos. Ora à inquirição de Kardec: "- Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único, todo poderoso, soberanamente justo e bom, não temos uma idéia completa dos seus atributos?" os próprios Espíritos respondem: "Do vosso ponto de vista sim (...). Mas sabeis que há coisas acima da inteligência do homem mais inteligente, e para as quais vossa linguagem (...) não tem expressão adequada. A razão vos diz, com efeito, que Deus deve ter essas perfeições no supremo grau (...) (destaques nossos) Raciocinemos, se Deus é tudo o que consta da pergunta, e que detêm mais atributos que estão acima de nosso maior gênio, mesmo com nossa tacanha inteligência, concluímos que Ele nunca poderia ser semelhante a nós humanos. As expressões: " (...) ele não vê a Deus mas sente sua sabedoria", são inerentes a todos os Espíritos, sejam inferiores ou superiores..
3- Os Espíritos, ao conquistarem o direito de escolha, do livre-arbítrio, da racionalidade, através dos fenômenos da Natureza, adivinharam e temeram a um Ser, ou Seres, superior (es), que dirigiria(m) vingativa, odiosa e iradamente tais manifestações. Com o posterior e obrigatório progresso, passamos a pressentir tal Ser com temor misturado a um tipo de respeito incipiente, e a uma emoção essencialmente humana, o que perfez o que denominamos misticismo, forma até hoje viva e atuante em quase todos nós. Assim, adoramos a esse Ser por meios objetivos, ou seja, apelamos ao recurso das imagens, ainda, por nossa necessidade de a tudo materializar, mesmo a Deus; não conseguíamos demonstrar sentimentos de outro modo; e isto até hoje persiste, faz parte intrínseca de quase todas as crenças. Chega o momento, agora, de adorar a Deus subjetivamente, pelo pensamento, pela intuição, pelas ações, pela melhora ética permanente, nossa próxima meta. Dissemos tudo isto para esclarecer que passou, já, a época em que pensávamos que veríamos objetivamente a Deus; nós, ou os Espíritos puros. A Doutrina Espírita, por ser eminentemente progressista e racional, não aceita tal pretensão.
4‑ Deus proíbe e permite? Cremos seguramente que não. Seus próprios atributos perfectivos nos fazem concluir que não há necessidade de derrogação de Suas Leis, e permissões e proibições são evidentes mudanças de algum ato ou lei. Se tais Leis são perfeitas, para que derrogá-las? Apenas para satisfazer à nossa necessidade de milagres, sensacionalismos? Sim, porque ao acreditarmos em tais procedimentos, estamos, também, a crer em milagres. Leis perfeitas, e eternas, são, obviamente, inderrogáveis, donde se deduz que Deus não permite ou proíbe.
5‑ Deus daria ordens? Pelo mesmo motivo do item anterior, pensamos ser outra aberração. Ordens são características de mudanças; emanam de autoridades, visando alterar algum estado de coisas; quando algo precisa de reparos, o responsável exara mandatos, para as devidas modificações. Ora, acabamos de ver que as Leis Divinas, pela perfeição que encerram, não têm a mínima necessidade de reforma. Outra característica da ordem é provir de seres humanos; reflexo, mais uma vez, do antropomorfismo: tentar reduzir o Senhor do Universo à nossa pequenez, emitindo de seu trono os decretos do dia. Dedução: Deus não dá ordens, como as entendemos.
Estaria errada a resposta dos Espíritos, então? Absolutamente, não; é uma questão de interpretação: ordens existem, provindas de entidades superiores, e representam balizas da mesma Lei Divina que vamos conhecendo conforme evoluímos. A Lei não se modifica, sim, apresenta diferentes facetas, em diferentes fases do progresso espiritual.
6- Os termos "advertências divinas" tem, ainda, a mesma conotação. Deus não admoestaria a nenhuma de suas criaturas como um velho ranzinza e autoritário, ilação imediata da resposta, se não passa por análise. Advertências, avisos, observações fazem parte da Lei de Ação e Reação, que, por sua vez, é prolongamento da Lei Divina, Eterna, Imutável, Inderrogável.
7- Quando lemos que "para comunicar-se com Ele é preciso ser digno", que não nos venha à mente a ilusão de que teremos, quando puros, um íntimo " tete a tete". E depois, quem são os "dignos"? Os que tentam bajular a Deus, comprá-lo com falsas adorações, rezas prolongadas, estabelecidas e interesseiras, ou os que, através de ingentes esforços próprios, modificam seu interior e evoluem? De mais a mais, o que será de nós, então, pobres Espíritos inferiores? Ser-nos-á vedada a oportunidade de comunicarmo-nos com o Pai infinitamente justo e bom? Evidentemente, não! Nossa mediocridade não representa empecilho para que nosso pensamento a Ele não se eleve e para que não haja reciprocidade. Aliás, está aqui a forma mais sincera das preces: a comunhão íntima da criatura (não interessa seu grau de adiantamento) com o Criador. Como alguém privar-nos-ia de uma das únicas prerrogativas que podemos ostentar? Pode até ser que os Espíritos superiores conquistaram um modo mais lógico de transmissão mental para com Deus; não, porém, mais eficiente, pois, aqui, a eficiência não depende do progresso espiritual alcançado, sim da sinceridade que qualquer Espírito, por mais inferior que seja, pode ter. Insistimos, uma vez mais, na questão da semelhança a que queremos forçar Deus com os humanos: tal comunicação não será jamais, de forma alguma, oral, mas sempre e sempre, mental.
8 - "Eles podem melhor receber as advertências divinas". Entendamos "advertências" por Leis e tudo se aclarará. Evidencia-se o fato de que quanto maior progresso o Espírito ostente, mais estará apto a não só perceber, como a compreendê-las. Deixemos bem explicito que não percebem ou recebem ordens ou advertências; percebem, recebem, compreendem, Leis!
Os aspectos que vimos, da questão 244, merecem nossa atenção e, sobretudo, análise cuidadosa, interpretação acurada, a fim de não incidirmos em erros crassos do antropomorfismo dos caprichos divinos, das preferências, privilégios, etc. Adeptos de outras doutrinas podem, até, compreendê-los assim, não, porém, nós espíritas, que temos a obrigação de discernir e raciocinar, mesmo sobre nossas próprias bases.
Também, há que considerar que os Espíritos não nos disseram tudo; houve concordância com a época. Eles mesmos nos dizem, na questão 581: "- (...) é preciso ter em conta as circunstâncias; os homens de gênio devem falar segundo os tempos e tal ensinamento que parece errôneo ou pueril em uma época avançada, podia ser suficiente para seu século."
A Nova Era – Junho de 2000.