LOUCA HUMANIDADE!
O suicídio revela no homem civilizado o estado aviltante a que ele relega a existência planetária, conduzido ao supremo ódio às Leis Divinas, por ver-se atingido pela inapelável força da evolução, cobrando ao infrator as dívidas não resgatadas. Nesse mister, o tempo não tem qualquer significação, importando não o período transcorrido entre o débito e o ressarcimento, mas a dívida em si mesmo.
O suicida é um espírito soberbo e calceta1 que, na impossibilidade de atingir o fulcro da Divindade que lhe não permite continuar semeando destruição, alucinado pelas ambições crescentes e selvagens, se destrói, tentando, desse modo, alcançar o Sumo Espírito da Vida. Odiento e infeliz, arroja-se, porém, nos mais fundos despenhadeiros, cujo anteparo não consegue encontrar, experimentando inominável dor, enquanto perdurem as novas impressões que se lhe adicionam às angústias das quais desejou fugir e que o enlouquecem, sem roubar-lhe a consciência da própria insânia.
Os séculos de civilização, de ética e cultura não conseguiram fazer que o instinto de autodestruição – que apenas no homem se manifesta, já que os demais animais, não raciocinando, não se fazem vítimas do hediondo crime – fosse dominado pela análise fria e nobre da razão. Pelo contrário: parece que nas nações chamadas supercivilizadas, pelo abuso das faculdades que revestem o ser, o homem atira-se cada vez mais opiado2 no sorvedouro da autodestruição, consumido pelos excessos de todo porte, ensoberbecido pela técnica e amolentado pela comodidade perniciosa.
Se anteriormente a forca anunciava a presença da civilização numa cidade, o alto índice de suicídios num povo, atualmente, revela a sua elevada cultura. Cultura, no entanto, pervertida, sem Deus nem amor, sem vida nem sentimento. Cultura da inteligência, com amarguras do sentimento, altas aquisições externas sem qualquer conquista interior. Vitórias sobres as realidades de fora e escravidão aos impositivos de dentro.
Face às concessões facultadas pela moderna tecnologia e graças à decadência ética do mundo, favorecida pelo desgoverno e empobrecimento da fé nas grandes massas humanas, o ser marcha sob o azorrague3 de mil angústias, encontrando no suicídio a porta falsa para a equação de problemas que a ele compete resolver pelos processos da não-violência, perseverando no dever sob o reto amparo do tempo. Impaciente, por acomodação ao imediatismo, cujos frutos sempre colhe na árvore da oportunidade ligeira, transforma a paisagem íntima num inferno, e entre as labaredas da inquietação levanta a mão que converte em sicário da vida e atira-se na inditosa loucura da morte voluntária, em busca de um nada que seria o repouso eterno, numa violação das mais graves ao Estatuto Divino.
Preferindo aceitar que o ser humano é um acidente biológico na escala zoológica, por retirar da sua consciência as responsabilidades para consigo mesmo o homem cultiva o orgulho, a soberba, desenvolve a ferocidade, a rebeldia e jacta-se de ser o senhor do mundo, menos, sempre menos, senhor de si mesmo.
Vivendo na condição predatória de explorar a mãe-Terra quanto lhe facultam as possibilidades, faz-se ingrato, esquecendo de retribuir todas as concessões gratuitas que usufrui sem a menor consideração: a vida física e mental, o ar, a água refrescante, o fruto silvestre, a paisagem rica de colorido e perfume, a maravilha do Sol, a bênção da noite, a dádiva das tempestades que lhe renovam a atmosfera... para somente pensar em si mesmo e nas baixas expressões do prazer animalizante.
Escravo nas paredes celulares, encarcerado nas limitações do sentimento, entorpece-se cada vez mais, até que um último grito de dor o arroja do acume da vida – que deve sempre ser cultivada a qualquer preço de sacrifício e sofrimento -, ao abismo em que se consumirá sem extinguir-se, enquanto lentos, pela dor aumentada, correrão os tempos, realizando o seu abençoado trabalho purificador.
Louca Humanidade! Conquista o mundo, transforma condições climatéricas, corrige o terreno, arrasa montanhas, retifica ilhas e as faz penínsulas, vence abismos com pontes audaciosas, reduz distâncias com aparelhos velozes, envia imagens sonoras e visuais a qualquer parte do orbe, graças aos satélites artificiais, atinge a Lua, mas prefere adiar o encontro com a consciência.
Vã Cultura! Estuda a História do passado e do presente, vaticina o futuro, arregimenta princípios de escolaridade intelectual, procede a julgamentos de vultos que foram fatores lídimos das Civilizações, examina estratégias bélicas e recompõe monumentos de arte, na pintura, na estatuária, na arquitetura, na arqueologia, ressuscita partituras que trazem a música dos Mundos Felizes e, no entanto, prossegue descontrolada, estiolando esperanças e espalhando pessimismo, sem penetrar no imortal conceito do “Nosce te ipsum”4, mediante o qual poderia resolver os magnos problemas da vida, pelo autodescobrimento das virtudes e dos defeitos, desenvolvendo as primeiras e limando os segundos, em incessante labor de superação dos males acarretados pelas mesclas renascentes dos erros pretéritos, na busca da luz futura.
Insensata Tecnologia! Invade o microcosmo e decifra milhares de enigmas que antes infelicitavam a vida organizada no mineral, no vegetal, no animal e no homem, e criavam graves desconcertos nas formas vivas, identificando germens, vírus, flora e fauna de estrutura infinitesimal, adentrando-se pelos laboratórios para proceder à elaboração de fórmulas e soluções capazes de aniquilar os focos pestilenciais que fazem sucumbir o corpo, não conseguindo, porém, estancar as fontes do ódio, da inveja, da malquerença, do ciúme, do despeito, da intriga, da impiedade, da ira, do orgulho, do egoísmo – esses semens de ação corrosiva, por criarem campo de proliferação nos tecidos sutilíssimos da alma. Irrompe pelo macrocosmo e mede as estrelas, sonha com as colméias globulares e as ilhas interplanetárias, identificando-as, classificando-as, conhecendo-as mediante os sinais de rádio, amando-as; prevê-lhes a idade, a distância em que se encontram, o envelhecer paulatino, a transformação pelo desgaste da energia em que se consomem, e até as visualiza nos movimentos célicos,5 em órbitas inconcebíveis, mas não utiliza as lunetas que penetram no continente do espírito, para estudar os centros de vida que gravitam em torno da nebulosa excelsa que envolve todo o Cosmo, como continente e conteúdo.
Após quase doze mil anos de Civilização, o homem parece apetecer em ser não apenas “o lobo do homem” mas o chacal de si mesmo.
O suicida é o imaturo desajustado na escola da vida, fugindo da consciência culpada para despertar de coração e mente estraçalhados.
Enquanto não rutilar a fé poderosa e pura, que traduza a verdade maior do Amor no coração da Humanidade, o homem fugirá da vida para a Realidade, afogando-se nos rios da Imortalidade, sem consumir-se no aniquilamento que tanto persegue, não colimando o cobiçado objetivo.
A ética, que na Antigüidade oriental afirmava o “espírito e negava o mundo”, renasceu no Cristianismo, oferecendo no pessimismo, em relação ao imediato, o otimismo de referência à Imortalidade, com as credenciais da esperança e da paz.
No Espiritismo, o mais eficiente antídoto contra o suicídio – suicídio em cujo corpo sempre se encontram as fortes amarras da obsessão pertinaz, em conúbio danoso, de conseqüências imprevisíveis -, o otimismo no tocante à vida real e indestrutível estabelece uma ligação entre a cultura atual e as culturas pretéritas, em perfeita sintonia de ideais, dos quais a técnica e as modernas conquistas podem extrair os frutos opimos6 a benefício da Civilização contemporânea.
Provenientes de séculos de nefanda ignorância e contínuo primitivismo do sentimento, em que a força sobrepairou à legalidade e o absolutismo do poder esteve em mãos fortes e ingratas, engendrando misérias coletivas, infindáveis, renascem aqueles que foram factótum dos males, embrulhados nos tecidos dos resgates, experimentando, entre revoltas injustificáveis, o clima de dor e sombra que produziram para si mesmos.
Ambientados à dominação e açoitados pelas vítimas que se demoram em outra vibração da vida, raramente têm o caráter capaz de suportar os impositivos evolutivos, deixando-os solapar pelo desânimo e pela acrimônia, que culminam no suicídio enganoso e cruel.
Verdadeira chaga social, na velha Roma constituía honra dar a sua pela vida do Imperador, e não poucas vezes homens ilustres foram convidados ao suicídio, porque discordassem das diatribes e loucuras da sua época: Petrônio, o arbiter elegantiarum,7 Sêneca,8 o filósofo, passando à imortalidade o exemplo de Sócrates, o pai da Filosofia, que vem da Grécia antiga, condenado a beber cicuta. Todos eles, no entanto, sacrificados pela ferocidade do poder desmedido, tornaram suas vidas alicerces para as construções da dignidade humana, que sempre soube, também, expulsar do dorso os usurpadores e criminosos.
A liberdade humana num crescendo transformou-se em degradante libertinagem, nos dias modernos, e fez-se fator preponderante para tornar o suicídio uma solução, considerando que o desvitalizar da pujança do caráter faz que o homem seja somente o seu exterior dourado e enganoso, não as suas qualidades morais elevadas.
Período cíclico, que representa trânsito na evolução do ser e do planeta que o agasalha, o apagar das luzes da cultura otimista sob as sombras destrutivas do pessimismo impõe que surja um claro-escuro, uma fímbria representativa do acender de novas luzes que significam a madrugada do Novo Dia, no qual o aforismo latino Veneratio vitae9 estabelecerá novas linhas de comportamento humano e social, facultando ao homem a vitória sobre as tentações da fuga, o primitivismo das sensações – altos objetivos que devem caracterizar a própria Humanidade. (Espírito de Victor Hugo)
Notas do compilador: 1 - calceta = condenado à pena; 2 - opiado = preparado com ópio; 3 - azorrague = flagelo, punição; 4 - Nosce it ipsum = conceito que se encontrava inscrito no pórtico do Santuário de Delfos, em grego: "Gnöthi seauton" e que significa: "Conhece-te a ti próprio". Estrutura moral da filosofia de Sócrates; 5 - célicos = celestes; 6 - opimos = excelentes, férteis, ricos; 7 - Petrônio = escritor latino (I d.C.) a quem se atribui o Satyricon (obra que prosa e versos se misturam). Matou-se, cortando as veias do pulso; 8 - Sêneca = (4 a.C. - 65 d.C.). Filósofo, preceptor de Nero que lhe ordenou que cortasse os pulsos; 9 - Veneratio vitae = conceito básico da ética latina, que significa "Respeito pela Vida", em toda e qualquer manifestação.